Ética na atividade econômica

Ética e Economia


O que é ética?

Antes de tratar da relação entre economia e ética, convém relembrar alguns conceitos.

Observar as coisas como elas são na realidade é um fato. Outro, muito diferente, é como as coisas deveriam ser. Ao andar de carro, por exemplo, uma coisa é a velocidade real que alcança o veículo e outra, diferente, é a ideal que deveria alcançar. Uma coisa é como um time de futebol joga e outra, como deveria jogar. Uma coisa é a nota de um aluno na prova e outra, aquela que deveria obter.

Cada pessoa capta os objetos que lhe são apresentados externamente por meio dos sentidos e tenta compreendê-los com a inteligência. Com a vista observa-se um carro em movimento, com o ouvido capta-se o som de uma orquestra tocando, com o olfato sente-se o perfume de uma flor. Os sentidos são janelas. Abertas para fora, põem as pessoas em contato com o mundo exterior.

Por meio da inteligência, processa-se a informação captada pelos sentidos e é possível compreender aquilo que os sentidos apresentam.

Usando a inteligência, o homem aprendeu a medir a velocidade, inventou a roda, descobriu a utilidade da borracha, extraiu o ferro, produziu o aço e, juntando invenções, fabricou carros. Com eles, é possível deslocar-se mais rápida e confortavelmente. A inteligência humana permitiu ao homem descobrir as escalas musicais, estudar tons graves e agudos, e até gravar os sons emitidos por pessoas, animais e instrumentos. Aprendeu também a reproduzi-los com grande precisão em qualquer momento, sem a necessidade de ter um passarinho na gaiola ou assistir a um recital no teatro.

A primeira parte do argumento, o que as coisas são, está respondida. mesmo que de um modo simples. Os objetos têm uma realidade própria, independente de cada ser humano, ou seja, estão disponíveis em qualquer lugar; a qualquer momento. As pessoas captam as coisas por meio dos sentidos, e procuram entendê-las e saber como elas são.

Bem diferente de como elas são é como deveriam ser. Dizer que algo deveria ser diferente de como é implica um julgamento, uma valoração, um juízo de valor. Tomando por exemplo o caso de um carro. Alguém pode afirmar: esse carro é uma tartaruga, deveria correr mais. Ou então, após um jogo de futebol, comenta-se de um time: devia ter passado mais a bola, ou os atacantes deviam ter chutado mais a gol...

No exemplo da audição musical, é possível julgar a apresentação de uma peça dizendo: o pianista deveria ter interpretado mais lentamente essa sonata. No caso de uma representação teatral: os atores deveriam ter imprimido mais emoção ao drama. E também o empresário que demite o empregado: o contador devia ter sido mais honesto.

A finalidade das coisas

Em todos os casos, a regra de ouro para saber se a avaliação do que deve ser é adequada, correta e justa é a finalidade das coisas, isto é, a função para a qual foram feitas. A finalidade depende do fabricante, inventor ou criador daquilo que está sendo avaliado ou julgado.

Se um fabricante de carros encomenda um projeto de um modelo para que alcance a velocidade de 120 km/h, e o veículo pronto atinge somente 110 km/h, ele dirá aos engenheiros que o projetaram: o carro deveria correr mais.

Se uma sonata para piano foi composta para ser interpretada em determinado ritmo musical e o pianista a apresenta em um ritmo diferente, o compositor dirá: você tocou errado, esta sonata deveria ser interpretada no ritmo previsto no pentagrama.

O que se pode concluir desses exemplos? Que para entender a diferença entre o que as coisas são e aquilo que deveriam ser é necessário indagar a finalidade para a qual as coisas foram feitas. É precisamente a finalidade que determina se uma coisa é como deveria ser ou não.

Quando um carro alcança a velocidade para a qual foi projetado, quando um músico interpreta uma peça tal como foi composta, quando um aluno tira notas de acordo com sua capacidade e inteligência, diz-se que é um bom carro, uma boa música, um bom aluno.

Um segundo ponto é relacionar o bem com o dever ser. A descoberta da finalidade para a qual as coisas foram feitas é a chave-mestra do ser e do dever ser. É por esse motivo que se afirma que algo é bom, se cumprir sua finalidade, e ruim ou mau em caso contrário.

Quando se diz que um relógio é bom? Quando dá as horas com precisão, O relógio não é bom ou ruim em função do material de que é feito, embora o material possa concorrer para sua precisão. Pelo material um relógio pode ser valioso, mas não necessariamente preciso. Um relógio também não é bom pela concepção estética com que as agulhas marcam as horas, embora a estética possa tornar agradável olhar as horas.

Um relógio é bom quando cumpre a finalidade para a qual o fabricante o fez, isto é, quando oferece uma medida exata do tempo no momento em que é consultado, nem mais nem menos. Da mesma maneira, uma máquina fotográfica é boa quando reflete com perfeição a imagem captada pela lente. Ficou clara a relação entre finalidade e dever ser.

Resta analisar a relação entre finalidade e ética ou moral. Ninguém afirma que um relógio é ético por marcar corretamente as horas. Um carro também não é ético por alcançar a velocidade que consta do manual do proprietário.

Finalidade do homem e liberdade

A palavra ética não se aplica às invenções humanas — toca-fitas, bicicletas, geladeiras — nem mesmo às plantas ou animais, mas ao comportamento humano, ao agir livre do homem. Essa palavra de cinco letras, livre, é essencial para pensar em termos éticos. Sem liberdade não pode haver responsabilidade moral. Não se pode louvar nem culpar ninguém que não atue com liberdade. Ninguém responsabiliza criminalmente um ciclone ou uma tormenta pelos prejuízos que ocasiona.

A origem etimológica da palavra ética oferece pistas interessantes sobre seu significado. Ética provém de ethos que, em grego, significa uso, costume. Nas línguas latinas, moral deriva de mos-moris, tradução latina do termo grego ethos, que também significa uso, costume, aplicado ao comportamento humano. Ou seja, o termo era utilizado para designar o comportamento humano e, concretamente, o juízo moral das ações humanas. isto é, as ações boas eram éticas ou morais e deviam ser feitas. As ações más eram antiéticas ou amorais, e deveriam ser evitadas.

Então quem define a moralidade das ações humanas? Qual o critério a ser seguido para definir se determinado comportamento é ou não ético? Essa questão será respondida mais adiante. Antes, é preciso notar que às coisas e aos animais não se aplica a ética.

De um relógio alguém pode afirmar que é bom, porém ninguém diz que tenha bondade. Do mesmo modo um relógio pode ser ruim, mas não mau, isto é, não tem maldade. Já no caso de uma pessoa pode ser boa e ter bondade, da mesma maneira que pode ser má e agir maldosamente. Qual a diferença?

A diferença consiste em que, embora tanto as pessoas como as coisas coincidam em ter uma finalidade, só as pessoas podem dirigir-se livre e voluntariamente para ela. É em função da finalidade que são ou não como deveriam ser, e, portanto, é em função dessa finalidade que elas são boas ou más.

Qual é então o fim do homem? Quem é que dá essa finalidade ao homem?[1]Novamente a chave do segredo, tal como no caso do relógio, é saber quem criou o homem e imprimiu em sua vida uma finalidade.

Ao longo da história, foram dadas muitas respostas a esta questão. Alguns dos mais importantes filósofos gregos, como Sócrates, Platão e Aristóteles, utilizando sua inteligência, concluíram que há uma norma moral impressa na natureza humana. O homem, como criatura, tem uma finalidade e recebe uma moral que pode ou não seguir, porque, diferentemente das plantas e dos animais irracionais, é livre; essas normas morais — ética — são a chave de sua felicidade, porque estão intimamente ligadas à sua finalidade.

É por esse motivo que se tem consciência de que agir desonestamente não torna feliz o homem, pois vai contra sua finalidade.

Ao longo da história, muitos filósofos, sociólogos, literatos, políticos e economistas expressaram pontos de vista divergentes de filósofos como Aristóteles, na Grécia clássica no século V antes de Cristo, ou Tomás de Aquino, no século XIII. Hoje em dia são muitas as pessoas que pensam que os valores morais são relativos, que dependem de cada pessoa, porém a experiência pessoal e dos outros é o elemento chave de que há uma norma moral a ser seguida.

O que é economia?

Até aqui se falou apenas de ética. Falta conceituar a economia. Eis algumas definições compiladas por Samuelson:[2]

1. Economia é o estudo das atividades que, com ou sem dinheiro, envolvam operações de troca entre as pessoas.

2. Economia é o estudo de como os homens selecionam a utilização de recursos produtivos escassos ou limitados para produzir várias mercadorias e distribuí-las aos diversos membros da sociedade, para consumo.

3. Economia é o estudo de como a humanidade realiza a tarefa de organizar suas atividades de consumo e produção.

4. Economia é o estudo da riqueza.

Poder-se-ia continuar listando outras definições. É sempre difícil resumir em poucas linhas uma descrição exata de uma ciência de modo a caracterizar suas fronteiras, delimitando-a em face das de outras disciplinas, dando a entender ao principiante tudo que ela é.

Robbins apresentou uma definição geral de economia, abrangendo vários aspectos dos enfoques listados, acatada por muitos economistas e estudiosos: “Economia é a ciência que estuda o comportamento humano como um relacionamento entre fins e meios escassos que têm usos alternativos.”[3]

Com base nessa definição mais clássica sugere-se outra mais completa, por assumir que a ciência econômica é uma só, incluindo tanto a abordagem positiva quanto a normativa ou política. “Economia é a ciência social que estuda o comportamento humano (individual e social) como adequação do uso dos meios limitados de que o homem dispõe para a realização de fins diversos em função da sua natureza, que pressupõe a liberdade.”[4]

Relação entre ética e economia

Definidas as duas ciências, constata-se que ambas têm o mesmo objeto, estudam o homem, porém cada uma delas o analisa sob ângulos diferentes. A economia, como se viu, estuda o comportamento humano condicionado pela escassez, pela limitação de meios e de tempo em relação aos objetivos a que se propõe.

A ética estuda as ações do homem em relação à sua moralidade, isto é. julga se são boas ou más. Diz respeito, portanto, não aos fins próximos do homem, como comprar uma casa ou um carro, ou estudar tal curso universitário, ou trabalhar em determinada empresa, mas ao seu fim último, isto é, se essas ações contribuem ou não para a sua finalidade essencial. Este ponto merece ser bem explicado.

O homem é um ser com uma unidade essencial e profunda em sua vida. Ele pode propor-se como objetivo desempenhar determinada profissão, formar uma família, comprar uma casa na praia, associar-se a determinado partido político. Todas essas finalidades não são independentes da ética ou moral, precisamente em função da unidade de sua pessoa.

Alcançar cada uma dessas metas ou projetos pode envolver um aspecto ético importante. Uma pessoa pode comprar um avião com dinheiro que ganhou trabalhando e poupando durante anos, ou com dinheiro que roubou num instante. Outro pode conseguir um emprego dizendo a verdade ou mentindo. Comprar com dinheiro roubado e mentir ferem a ética e têm consequências para a pessoa.

Pense-se, por exemplo, em um atirador profissional. Um tiro certeiro pode consagrá-lo como campeão mundial ao acertar o alvo durante as olimpíadas, ou colocá-lo na cadeia se acertar a cabeça de uma pessoa inocente que passa pela rua. A mesma ação, atirar, não é indiferente do ponto de vista ético, em função da intenção, do objeto e das circunstâncias da ação. Atirar pode ser uma ação meritória ou destruir interiormente uma pessoa.

Ganhar dinheiro não é somente algo bom, mas necessário para a própria subsistência e da família. Porém não de qualquer maneira. Fraudar; roubar, mentir, para ganhar dinheiro, ferem a ética e afastam o homem de sua finalidade essencial. Esta infração não é algo circunstancial, mas algo muito profundo. Ir contra a moral é ir contra o próprio ser do homem. A moral não é um código exterior convencional de preceitos humanos que muda com o tempo, ou que depende de cada um ou da sociedade, mas é algo interior, inseparável da própria pessoa. Da mesma maneira que ninguém dá a vida a si próprio, igualmente não é dono e senhor da ética.

Assim, como os fins econômicos a que uma pessoa se propõe não são totalmente independentes da ética, a economia como ciência também não pode desentender-se dos aspectos éticos. Uma pessoa que cometa ações contra a ética se destrói a si própria como pessoa, mesmo que consiga aquilo que deseja e se torne imensamente rica ou poderosa e pareça ser feliz. Assim também quando a ciência econômica não se subordina à ética não contribui para o verdadeiro bem-estar e desenvolvimento da sociedade.

A ética, condição necessária na ordem pessoal, também é condição de sobrevivência da sociedade. Sem ética, o convívio social torna-se insustentável. Sem confiança mútua, por exemplo, não se realizariam transações econômicas, nem haveria contratos. Ninguém empregaria, ninguém produziria, ninguém se associaria. Cada um viveria única e exclusivamente para si, cuidando dos próprios interesses. Como resultado, a sociedade ruiria, voltaria às cavernas.

A economia, como qualquer atividade humana, está subordinada à ética. Isso não significa que não tenha autonomia para desenvolver suas conclusões e proposições de política econômica, mas apenas que suas recomendações devam subordinar-se a um critério anterior e mais importante, a valoração ética.

Alguns exemplos podem ajudar a tornar este ponto mais claro. Imagine-se um problema de desemprego em determinado país. Muitas soluções podem ser pensadas como possíveis e viáveis, tais como diminuir os impostos das empresas que criem empregos, ou isentar fiscalmente áreas do país em que o problema seja especialmente grave, ou ainda estimular investimentos de empresas estrangeiras para que instalem no país suas fábricas. A ética não entra diretamente no mérito de como resolver o problema econômico, nem tem como função apresentar soluções que são competência exclusiva das empresas ou do governo, ou dos empresários e economistas, porém os economistas devem ter presente que o critério ético deve orientar o critério econômico.

Voltando ao desemprego, por exemplo, não se justifica eticamente forçar determinadas famílias a migrarem para determinada área onde estão necessitando de empregados. As pessoas podem ser incentivadas economicamente, mas não podem ser deslocadas contra a sua vontade. A liberdade é um bem que deve ser respeitado.

Do mesmo modo, as empresas não podem obrigar ninguém a trabalhar por salários menores que os combinados em contrato, ou em condições que atentem contra as normas de segurança no trabalho ou contra a dignidade humana. Se o fizerem, estarão ferindo a ética.

A ética, portanto, orienta as decisões quanto à moralidade, porém não resolve o problema econômico em si. A ética como ciência não compete elaborar teorias sobre a inflação, porém pode denunciar como antiéticas práticas de corrupção ou oportunismo favorecidos pela inflação.

Igualmente não compete à ética decidir como aumentar a arrecadação de impostos ou como diminuir os gastos do governo, porém tem um papel a desempenhar em relação a como os recursos são arrecadados ou distribuídos. Se um fiscal exigir dinheiro do contribuinte para que este sonegue imposto sem ser denunciado, a ética estará sendo ferida. Se um político desviar verbas públicas e depositá-las em sua conta corrente, estará infringindo a ética.

Resumindo, economia e ética são ciências autônomas, porém não independentes. A economia está subordinada à ética, embora elabore suas teorias e propostas com liberdade. Como o fim ético é mais importante que o fim econômico, pois este último diz respeito só a um aspecto da vida humana, enquanto o primeiro refere-se ao fim último e mais importante do homem, as políticas e o comportamento econômico dos agentes não devem ir contra a ética, porque nesse momento iriam contra o próprio homem e contra a sociedade.

A economia e os economistas, se verdadeiramente desejarem contribuir para o desenvolvimento das pessoas e para o bem comum da sociedade, não poderão ignorar a ética, mas deverão servir-se das normas morais e éticas como norte e guia. A ética não é uma limitação para a economia, do mesmo modo que uma estrada não é uma imposição para os carros. Antes pelo contrário, sua função é facilitar que as pessoas cheguem a seu destino, mesmo que aparentemente seja uma limitação trafegar dentro da estrada e obedecer as leis do trânsito.

Referência


ARRUDA, Maria Cecilia Coutinho de. WHITAKER, Maria do Carmo. RAMOS, José Maria Rodriguez. Fundamentos de ética empresarial e econômica. São Paulo: Editora Atlas, 2005. 143-150p.



[1] POLO BACARRENA, Leonardo. Ética: hacia una versión moderna de los temas clásicos. Madri: Aedos Unión Editorial, 1996. p. 17-20.
[2] SAMUELSON, Paul A. Introdução à análise econômica. Rio de Janeiro: Agir, 1970, p. 30-31. (Tradução.)
[3] ROBBINS, Lionel. An essay on the nature and significance of economic science. 2. ed. Londres: Macmillan, 1935, p. 16.
[4] RAMOS, José Maria Rodriguez. Lionel Robbins: contribuição para a metodologia da economia. São Paulo: Edusp, 1993. p. 107.










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